[2017] Nem Tosco Todo: “Em Conquista você só tem duas opções: ir pro bar ou pra igreja”

Foto: Blog do Fábio Sena

"O Brasil é um país muito grande e diverso. Tem público para todos. O que acontece é que existe o poder midiático nas mãos de poucos empresários, que não tem interesse em um trabalho mais consistente."
Por Maurício Sena / Fábio Sena

Nem Tosco Todo, líder da Banda Cama de Jornal, é um clássico roqueiro: não admite assinar o Pacto da Mediocridade que, vai aos poucos, ganhando signatários Brasil e mundo afora, também não assume postura de condescendência com certa imbecilidade que teima em fazer residência na sociedade. Engajado e formidavelmente compenetrado na arte de fazer rock – para ele, ferramenta de conscientização, de revolução -, nesta entrevista ao jornalista Maurício Sena Nem Tosco Todo volta à carga com sua proverbial habilidade em difundir pensamentos originais, e uma filosofia de vida cuja principal premissa é a fuga das estéreis convenções sociais, marca predominante de um dos integrantes da banda mais repeitada do punk em Vitória da Conquista e região.

Na visão do roqueiro, é preciso construir ainda uma efetiva política cultural em Vitória da Conquista, vez que, em sua visão, não se pode admitir como “política cultural” a realização de dois grandes eventos por ano (São João e Natal da Cidade). “E é isso que a prefeitura tem feito, através da Secretaria de Cultura”. Em relação ao Governo do Estado, sua crítica vai em direção à burocracia que, muitas vezes, inviabiliza a realização de projetos de boa qualidade. No entanto, pouco afeito à institucionalidade, Nem manda um recado àqueles que pretendem desenvolver um projeto próprio: “Se as pessoas não demonstram interesse em seu trabalho, ou até mesmo não reconhece você como artista, organize você mesmo suas turnês e shows fora daqui. Enfim, se você quer, você pode! Faça você mesmo”.

Abaixo uma vigorosa manifestação de rebeldia, recheada de refinado senso de humor e uma profunda vontade de realização:

Quem é Nem?
Nem: Rapaz, até hoje ainda não descobri. Tô nessa busca de saber quem eu sou de fato. Talvez eu seja aquele cara simples, mas que não se enquadra nesse formato de sociedade, que não vislumbra a necessidade de ter algo para ser feliz, que está em constante conflito consigo mesmo e com o mundo ao seu redor.

Como começou a relação com o Rock?
Nem: Veio na minha adolescência. Acho que surgiu dessa minha inquietação. Dessa minha busca por uma identidade que não fosse óbvia e que não me levasse junto com a multidão. A partir daí, comecei ouvir algumas bandas de rock, que tinham letras que também refletiam os meus sentimentos e questionamentos.

Como nasceu a Cama de Jornal?
Nem: Eu já acompanhava a cena rock local, desde o final dos anos 80, com bandas como Atestado de Pobreza, NRU, Depressivos, dentre outras, rolava uns shows. Mas já os anos 90 foi sofrível pra cena rock de Conquista. Nada acontecia pra quem gostava do estilo. E foi já no ano 2000/2001 que eu vi o ressurgimento da cena com bandas como Renegados, que vinha com a proposta de fazer um punk hardcore, produzindo seus próprios eventos, pela periferia da cidade. E eu achei bacana essa proposta, e em um show em Poções, eu conheci Lázaro e Rose, e resolvemos então montar a Cama de Jornal. Isso foi em 2001. E de lá para cá, já gravamos 4 CDs de estúdio, uns 3 CDs ao vivo, vários DVDs, muitos shows rolaram, turnês por São Paulo, Nordeste, Goiânia, Brasilia, e muitos pela Bahia. Esse ano completamos 15 anos de banda, é muito tempo… Acessem nosso site e conheça mais sobre a banda: www.camadejornal.com.br.

Por que tosco todo?
Nem: Esse nome surgiu quando a gente tava pra lançar o nosso primeiro cd e não tínhamos nenhuma gravadora ou selo para lançá-lo. Aí eu criei esse “slogan” pra colocar impresso no CD. Depois eu criei um selo de divulgação de bandas, que tinha esse mesmo nome, depois virou site com resenhas de cds de bandas independentes; mas recentemente é um blog de divulgação de entrevistas e lançamentos do underground. E ainda com o selo de divulgação, eu apoio alguns lançamentos de bandas, como Horda Punk, Misantropia, Guerra Urbana, dentre outras. e também através do selo foi lançado todos os materiais da Cama de Jornal, e também do meu projeto paralelo “Nem Tosco do e as crianças sem futuro”. E já lancei também um DVD-R do Cólera, gravado aqui em Conquista. E algumas coletâneas também como: Autonomia é o caminho(CD) e Material Reciclado (CD), disponíveis em http://toscotodo.blogspot.com.br/.

Como você analisa o Rock em Vitoria da Conquista de ontem e de hoje?
Nem: Então, como eu falei, Conquista sempre rolou uma galera do rock, sempre teve banda. Em uma época teve mais, em outras menos, mas sempre teve essa movimentação. Quem conhece um pouco sobre a história do rock de conquista sabe que desde os primórdios, nos 60/70, aqui já tinha banda de rock, que imitava os Beatles, como “Os Imborés” e “Os Trepidantes”. Tinha o SS433 que chegou até a lançar um compacto, várias bandas vinham trabalhando com o rock na cidade há muito tempo. A diferença para a cena de hoje é que o número de bandas aumentou, o público de rock também. Mas Conquista sempre teve o rock rolando.

Quais as bandas que melhor representam esta história do rock de conquista?
Nem: Então, como falar de bandas históricas se você não citar essas antigas, dos primórdios? Não tem como. Faziam rock no interior da Bahia naquela época, sem nenhuma estrutura. Bandas como “Os Imborés”, Atestado de Pobreza, Renegados, pra mim, apesar de serem de épocas bem distintas, foram bem importantes pra tudo que ta rolando de rock hoje em Conquista. Se não fosse por eles, a cena local talvez nem existisse como vemos hoje.

O Rock de protesto é uma vertente que ainda vigora?
Nem: Eu não gosto muito dessa denominação “rock de protesto”. Eu acho que o rock pra mim é uma ferramenta de conscientização, de revolução mesmo. E infelizmente o rock tem perdido um pouco essa veia, e com isso sumiu da periferia, que hoje tem uma força muito grande com o hip hop como ferramenta de transformação da comunidade onde está inserido. O punk já teve esse papel no Brasil, no final dos anos 70, início dos anos 80, mas hoje em dia o protesto que vem da periferia é o Hip Hop.

Como você avalia o rock em nível nacional?
Nem: O rock brasileiro sempre teve e sempre terá grandes bandas. Se você pesquisar vai encontrar muita banda legal, de todos os estilos do rock, punk, metal, rock and roll. Agora se você estiver se referindo ao rock comercial, o que passa na TV ou toca no rádio, esse aí já tem muito tempo que morreu.

Quais são as grandes novidades locais, no estado e no país?
Nem: Eu não vejo muitas novidades, e na verdade quando vejo algum artista sendo rotulado como “novidade”, eu já fico com o pé atrás. Mas aqui em Conquista mesmo, tem uma galera fazendo um rock legal, que não é nenhuma novidade, como a Dost, Dona Iracema, Ladrões de Vinil, Signista, Social Freak, Handevu, e tem uma galera mais underground, como a Krathera, Assault, Thrashard e várias outras que se eu for citar aqui vira um livro. Bandas baianas, tem O Cisco, banda muito boa de Ribeira do Pombal, Os Jonsons, de Salvador, Pastel de Miolos de Lauro de Freitas, Vômitos de Barreiras. Tem muita coisa rolando por aí. No Brasil, eu acompanho as bandas independentes mais undergrounds, e posso citar algumas, como a Penúria Zero de Brasilia, Aorta de Recife, Protesto Suburbano do Rio de Janeiro, que não são bandas relativamente novas, mas que estão sempre tentando produzir shows e discos. Mas tem uma banda de rockabilly chamada Asteroides Trio, que gravou recentemente um DVD em que mistura releituras de músicas punks com rockabilly, e eu gostei bastante.

O roqueiro conseguiu manter sua imagem após tantas transformações de comportamento?
Nem: Qual a “imagem do roqueiro”? Aquele que veste uma camisa do Ramones que comprou no shopping, sem nem ao menos conhecer a banda? O rock já esteve ligado a imagem subversiva, suja, largada, em outras épocas foi mais estilizada, e infelizmente isso gerou os estereótipos de “roqueiro”. Eu vejo que ser rock and roll está mais vinculado com postura ideológica, não com visual. Agora se você fala de “imagem do roqueiro” num contexto mais subjetivo, eu acho que o roqueiro de hoje tá muito reacionário, veja dois exemplos: Lobão e Roger. Dois caras que vieram do meio do rock, e todo mundo sabe como eles pensam hoje, né? E até no meio underground, no meio punk também, hoje tem uma pá de babaca que fica idolatrando Bolsonaro, um cara escancaradamente fascista. Enfim, gente que muda de postura no rock, tem de monte, e gente que prega uma coisa e faz outra, também tá cheio, ou seja, idiota e burro, tem em todo lugar. Então as mudanças de comportamento na sociedade acontecem constantemente, e com isso, gera toda essa confusão ideológica por parte daqueles que não são do rock, na sua essência.

Como você analisa a política cultural em nossa cidade?
Nem: Eu diria que não existe ainda. E explico… gerir uma política cultural não é realizar 2 eventos no ano (São João e Natal da Cidade). E é isso que a prefeitura tem feito, através da Secretaria de Cultura. Já por parte do Governo do Estado, é uma burocratização tamanha que leva muitas vezes bons projetos a não serem aprovados nos editais. Mas recentemente surgiu uma luz no fim do túnel, foi instituído o Sistema Municipal de Cultura que dentre outras coisas visa a criação do plano e do fundo municipais de cultura. O que se espera é que com isso facilite bastante o acesso de artistas aos recursos para a realização de projetos mais elaborados, e isso vai ser muito bom para a cidade, não só para os artistas, mas principalmente para o público carente de opções de lazer, já que aqui em Conquista você só tem duas opções: ir pro bar ou pra igreja. Vamos ver se vão ocorrer ações efetivas para mudar esse cenário. Eu espero que sim.

Quais as principais dificuldades para se produzir eventos?
Nem: Se você não tem apoio do governo pra realizar seus eventos, a situação é ainda pior quando se fala em apoio privado. Então, o que a gente faz, reúne uns amigos, um ajuda aqui, outro ali, e fazemos. É assim que tem acontecido por aqui, e na maioria das vezes, o dinheiro arrecadado na bilheteria, não dá pra cobrir todos os custos do evento. Na verdade, eu quando faço algo, é por querer movimentar, e por acreditar no que faço.

Quais os caminhos para uma banda nova, qual seria seu conselho?
Nem: Eu acho que não sou o cara ideal pra dar conselhos, mas o que posso dizer é que se você tem uma banda, quer gravar um disco, ou quer viajar em turnê, a solução nesse momento (e desde muito tempo atrás) é “fazer você mesmo”. Se hoje a Cama de Jornal tem algum material gravado, é por conta desse lema que a gente adquiriu através do movimento punk. No final do ano passado a Cama de Jornal deu uma parada por conta que nosso baixista viajou a trabalho. E eu parei de fazer som? Não. Peguei um projeto paralelo que eu tinha gravado um CD, e organizei vários shows pra gente tocar e divulgar o material. E recentemente, já estamos em processo de composição de um novo CD totalmente inédito e autoral. Então, se você quer tocar e ninguém chama sua banda, organize você mesmo o seu show. Se você tem um disco mais nenhuma gravadora ou selo independente se interessa, grave e lance você mesmo. Se as pessoas de sua cidade não demonstram muito interesse em seu trabalho, ou até mesmo não reconhece você como artista, organize você mesmo suas turnês e shows fora daqui.
Enfim, se você quer, você pode! Faça você mesmo!!!

O que falta para termos mais mulheres no universo rock, especialmente protagonizando a cena?
Nem: Eu acho que as mulheres que tinham esse interesse de ser protagonista conseguiram ser. Conquista já teve várias bandas de rock formadas por mulheres, como a Mistaken, a Blas Femia e a Tomarock. Hoje em dia tem a Nobres Companios que é uma mulher no vocal, mas não sei se estão ativos no momento. Tem a Old Stove que tem Marcela como baixista. E tem Brenda, tocando baixo comigo no meu projeto “Nem Tosco Todo e as Crianças sem Futuro”. Brenda tocava na Blas Femia. As mulheres estão sempre presentes na cena, seja como público ou como integrantes de bandas.

A cultura de massa, o apelo comercial atrapalha a formação de consumidores de rock e gêneros afins?
Nem: Acho que não. O Brasil é um país muito grande e diverso. Tem público para todos. O que acontece é que existe o poder midiático nas mãos de poucos empresários, que não tem interesse em um trabalho mais consistente, eles querem uma coisa mais imediata, retorno imediato de investimento, e trabalham com esses “produtos” descartáveis, para poder tá sempre em constante “renovação de estoque”. Eles fazem como os fabricantes de roupas, todo ano renovam o estoque e sempre surgem “novidades”. E o rock não, eles até tentam fazer isso com o rock de vez em quando, criando “novos produtos” que logo as pessoas percebem que eram produtos “falsificados” ou de “baixa qualidade”, mas que não funcionam por muito tempo, porque o rock verdadeiro não tem prazo de validade, é atemporal.

Quem são as crianças sem futuro?
Nem: eu estava montando esse projeto e achei que se colocasse só meu nome Nem Tosco Todo ia ficar estranho e resolvi montar uma banda que eu chamei de “As crianças sem futuro”, uma forma de homenagear a banda Ratos de Porão que tem uma música com esse nome. Como o primeiro CD do projeto era uma homenagem a todas as bandas que me influenciaram de alguma forma no meio punk, ficou esse nome mesmo: “Nem Tosco Todo e as Crianças Sem Futuro”. E também, não deixa de ser uma crítica a forma como nós, sociedade, tratamos nossas crianças. E olhando de uma forma mais ampla, qual o futuro dos nossos filhos? São reflexões que o nome da banda pode trazer a tona. E a propria capa do nosso primeiro CD é a foto de crianças da fundação casa, em são paulo, em fila, todos com a mesma roupa, formando um padrão. Será que é esse o padrão que queremos para nossas crianças? O que temos a oferecer para elas? Estamos fazendo nossa parte para transformação desse quadro? São questionamentos que um simples nome pode trazer.

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Plácido Oliveira

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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